“A
Lei no pensamento de Paulo”
Determinar o pensamento de um teólogo com o Ap. Paulo não é tarefa fácil,
todavia, esta é a proposta da teologia bíblica.
O pensamento paulino acerca da Lei parece-nos, por vezes, quase
contraditório. Os ensinos de Paulo sobre a Lei são sempre abordados a partir da
perspectiva da experiência histórica, tanto do próprio Paulo como rabi judeu,
como de um judeu típico do primeiro século da nossa era, sujeito à Lei. Contudo,
o seu pensamento não tem de ser visto nem como uma confissão de sua autobiografia
espiritual, nem como uma descrição do caráter legalista do farisaísmo do primeiro
século, mas como uma interpretação teológica, feita por um pensador cristão, de
duas maneiras de justiça: o legalismo e a fé.
Para conseguirmos abordar este tema, precisamos fazê-lo face ao
fundamento triplo que encontramos em Paulo: a religião do Antigo Testamento, o
judaísmo e as suas próprias experiências. No centro da religião do Antigo
Testamento não podemos caracterizá-lo como legalista, pois a Lei não foi dada
como meio para obter uma relacionamento justo com Deus através da obediência. A
Lei foi dada a Israel como o meio de unir Israel ao seu Deus, fornecendo um
padrão a ser obedecido. A recompensa para a obediência à Lei era a preservação
do relacionamento positivo com YHWH. Além disso, a obediência exigida pela Lei
não poderia ser satisfeita através de um mero legalismo, pois a própria Lei
exigia amor a Deus e ao próximo. A obediência à Lei de Deus era uma expressão
de fé em Deus; e somente os que tinham fé eram o povo de Javé. No período
intertestamentário, deu-se uma mudança fundamental no papel da Lei em relação à
vida das pessoas. A observância da Lei torna-se a base do veredito de Deus
acerca do indivíduo. A Lei alcança a posição de intermediário entre o homem e
Deus. E é este novo papel da Lei que caracteriza o judaísmo legalista: a Torah
torna-se na única mediadora entre Deus e os homens, tudo gira à volta da
observância da Lei. Aqui a fasquia não era alcançar a justiça pelo cumprimento
integral da Lei, mas sim esforçar-se por regular a sua vida de acordo com a
Lei; o próprio Paulo confessa ter tido este mesmo propósito de vida: uma
vivência de obediência legalista à Lei. Paulo reconhece que foi o seu zelo
excessivo pelo cumprimento da Lei que o cegava em relação à revelação da
justiça de Deus em Cristo. Só através da intervenção divina a caminho de
Damasco destruiu o seu orgulho e a sua "auto-justiça", e o levou a
aceitar a justiça de Deus em Cristo. Com Cristo foi inaugurada a era
messiânica, "as coisas velhas passaram e tudo se fez novo", e com
Cristo veio uma nova era, na qual a Lei desempenhava um papel novo e diferente.
Sob o antigo pacto, a Lei era um código externo, escrito, que colocava diante
dos homens a vontade de Deus. O fracasso tinha como consequência a morte; neste
novo pacto a Lei passa a ser um poder interior, vivificante, que produz a
justiça. "Obediência à Lei não quer dizer seguir os preceitos detalhados
escritos no Pentateuco, mas cumprir uma relação com Deus para a qual a Lei
aponta; e isto prova, que é uma relação de não obediência legal, mas de
fé."
A Lei não consegue transformar pecadores em homens justos por ser um
código externo, e os corações pecadores dos homens necessitam de um poder
transformador interior. A Lei é um código escrito e não uma vida concedida pelo
Espírito de Deus. O propósito da Lei não é a salvação do homem, mas teve um
papel no propósito redentor de Deus. A Lei mostrava o pecado, revelava a
verdadeira situação do homem e a sua responsabilidade para com Deus. Daí que a
Lei se torne num elemento de condenação, não por ela mesma, ela apenas revela o
pecado, e esse sim traz a morte. A dispensação da Lei pode ser chamada de
dispensação da morte, escravidão ao mundo, pacto de escravidão ou período de
infância, quando se está sob o controle de tutores, como Paulo refere em
Gálatas 3:23-26. "Cristo é o fim da Lei, levou a era da Lei até ao fim,
pois cumpriu tudo o que a Lei exige”. A Lei não é má, pelo contrário, Paulo
reconhece-a como sendo justa, boa, perfeita, porque vem de Deus, mas agora, o
novo homem deve cumprir a Lei escrita em seu coração pelo Espírito de Deus. A
redenção em Cristo habilita os crentes, a que de algum modo, cumpram a Lei. Agora
o aspecto permanente da Lei é o ético (o amor a Deus e ao próximo em ação), e
não o cerimonial. Cristo pôs fim à Lei como um modo de justiça e como um código
cerimonial; mas a Lei como a expressão da vontade de Deus é permanente; e o
homem habilitado pelo Espírito Santo e assim fortalecido pelo amor está
capacitado a cumprir a Lei de uma forma que os homens, sujeitos à Lei, nunca
conseguiram.
Paulo não considera a Lei meramente como o padrão divino para a conduta,
embora tenha origem divina e seja boa. No entanto, devido à fraqueza e
pecabilidade do homem, a Lei torna-se num instrumento de condenação, ira e
morte. A vida sob a Lei é uma servidão da qual o homem necessita libertar-se
(conf. Rm 7:12,14; 5:13; 4:15: 7:9; Gl 4:21-31).
Por fim, Paulo entendeu que a lei era boa para a vida cristã, como
mandamento de Deus, mas que essa lei não poderia salvar, somente servia para
mostrar a incapacidade do homem de se justificar e que apontava para Cristo. Para
Paulo, seguindo a forma da igreja primitiva, através da morte de Jesus, do
derramamento de sangue Deus purificou a humanidade (os que creem) da culpa do
pecado e precisamente desse modo fez com que se tornasse realidade a Sua
justiça de amor.
Bibliografia
Charles Ferguson Ball; "A vida e os tempos do Apóstolo Paulo",
CPAD, Rio de Janeiro; 1998;
Russell Norman Champlin; "O Novo testamento interpretado versículo
por versículo – vol.III"; Milenium Distribuidora Cultural; São Paulo; 1980;
Ridderbos Herman; “Teologia do Apóstolo Paulo”, Cultura Cristã, 2004.